quarta-feira, 31 de maio de 2017

POESIA E PROSA

Leio nestes últimos dias dois autores que muito admiro: SARAMAGO e QUINTANA.
Do primeiro leio A viagem do elefante que, embora de leitura mais "fácil" do que a dos demais do autor, traz como naqueles, além de uma reflexão sobre as atitudes humanas,  toda a ironia e crítica social, desta feita de uma forma bem humorada, que nos faz sorrir... e pensar....
Já de Quintana, o Baú de Espantos nos oferece deliciosos poemas que, no dizer de Ronaldo Polito que assina a apresentação do livro, buscam o "insólito por trás do comum, do cotidiano, do corriqueiro".
Dois autores, duas obras, um eterno prazer...

Aqui vão dois trechos dos dois autores, que tratam, de forma poética, da construção e constituição do discurso.

Realmente, o maior desrespeito à realidade, seja ela, a realidade, o que for, que se poderá cometer quando nos dedicamos ao inútil trabalho de descrever uma paisagem, é ter de fazê-lo com palavras que não são nossas, que nunca foram nossas, repare-se palavras que já correram milhões de páginas e de bocas antes que chegasse a nossa vez de as utilizar, palavras cansadas, exaustas de tanto passarem de mão em mão e deixarem em cada uma parte da sua substância vital. 
(José Saramago, A viagem do elefante,  p. 241)


O DESCOBRIDOR

Ah, essa gente que me encomenda
um poema
com tema...

Como eu vou saber, pobre arqueólogo do futuro,
o que inquietamente procuro
em minhas escavações do ar?

Nesse futuro,
tão imperfeito,
vão dar,
desde o mais inocente nascituro,
suntuosas princesas mortas há milênios,
palavras desconhecidas mas com todas as letras misteriosamente acesas
palavras quotidianas
enfim libertas de qualquer objeto

E os objetos...

Os atônitos objetos que não sabem mais o que são
no terror delicioso
da Transfiguração
(Mário Quintana, Baú de espantos, 2014)



sexta-feira, 26 de maio de 2017

CONTEMPLANDO AS PALAVRAS



Para Drummond, minha eterna admiração

Pelos poros,
pelos olhos,
pela boca sedenta,
pela garganta seca, 
pelos ouvidos,
sim, pelos ouvidos, 
elas penetram, com suas mil faces secretas...
Sua face neutra, aparente, 
inofensiva 
- quem disse?
se mostra, aqui, sempre, ansiosa por respostas, reações:
um sorriso, um olhar,
um gesto, 
uma palavra e outra e outra...
Há sim interesse pela resposta,
pobre ou terrível...
Mas... 
você não trouxe a chave,
você nunca viu a chave,
ou mesmo  tocou a chave.
Afinal, a chave existe?
Silêncio...




Chega mais perto e contempla as palavras.
Cada uma
 tem mil faces secretas sob a face neutra
e te pergunta, sem interesse pela resposta,
pobre ou terrível, que lhe deres:
Trouxeste a chave?
Carlos Drummond de Andrade
Rosa do Povo, 1945.

sexta-feira, 5 de maio de 2017

DESABAFO...

Por onde andam os heróis da minha terra, que inspiravam poetas, compositores, ou gente  comum, como eu e você?
Por onde andam os senhores dignos, que não precisavam assinar papel algum, pois sua palavra bastava, sua honra era a garantia de que o que prometiam seria feito?
Por onde andam as pessoas leais, que não traíam amigos ou parentes, não denunciavam o outro a fim da salvar a própria pele?
Por onde andam as pessoas que se orgulhavam de sua vida digna, de seu trabalho honesto?
Por onde andam os jovens que buscavam no conhecimento o caminho para ser alguém na vida?
Por onde andam as famílias que ensinavam o respeito ao outro e a valorização do sentimento, em lugar do consumismo desenfreado?
Essas pessoas não estão no noticiário. 
Não são notícia.
Mas eu sei, eu quero crer, fortemente, que elas existem.
Embora tenham se tornado invisíveis elas devem estar, como eu, observando abismadas a imensa degradação a que chegou este país,  e  que invade diariamente a nossa casa, em forma de notícias, em novas acusações, delações, encarceramentos e solturas...
Tristes dias...

Assentamento
Chico Buarque de Holanda
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